Cultura em contexto: as contribuições de Franz Boas para o pensamento antropológico moderno
Franz Uri Boas, nascido em 9 de julho de 1858 na cidade de Minden (Alemanha), era filho de uma família de comerciantes judeus e iniciou seus estudos universitários em física no ano de 1877. Após doutorar-se no ano de 1881, insatisfeito com as perspectivas de carreira, transfere seu interesse para a geografia e, após depois de mudar-se para Berlim (Alemanha), começa a trabalhar com Adolf Bastian no Museu do Folclore e a estudar técnicas de medição características da antropologia física com o anatomista Rudolf Virchow (CASTRO, 2004, p. 7-8; PIEZONKA et al., 2023, p. 1). É o começo de uma trajetória que inscreverá seu nome definitivamente na história da antropologia.
Através de uma pesquisa bibliográfica, este artigo visa apresentar as principais contribuições de Boas para o moderno pensamento antropológico. Iniciando com uma brevíssima biografia do autor, seguiremos apresentando algumas das ideias que foram responsáveis pela completa reformulação da antropologia americana, pela difusão da ideia de relativismo cultural e pela ruptura com o evolucionismo cultural e os determinismos geográfico e racial vigentes em sua época.
Sem dúvida, foi o interesse de Boas em física e geografia, associados ao aprendizado sobre cultura e antropologia que tivera em Berlim, que o colocaram numa expedição para estudo dos inuítes (então denominados esquimós) na ilha de Baffin, no Canadá (Figura 1). A experiência teve início em junho de 1883 e parece ter sido extremamente frutífera para Boas, resultando em dois livros (Baffinland, de 1885, contendo observações geográficas sobre o local e The Central Eskimo, de 1888, uma etnografia sobre os inuítes) e mudando definitivamente o seu interesse para o campo da etnologia (CASTRO, 2004, p. 7-10; GONÇALVES, 2020, p. 110).

Fonte: American Philosophical Society (apud ANGELBACK, 2023, p. 3)
Em julho de 1886, já com interesses estritamente etnológicos, Boas realiza uma pequena expedição à Colúmbia Britânica, no Canadá, onde visita diversas tribos, incluindo aquela que viria se tornar um dos seus grandes interesses de pesquisa, a dos Kwakiutl. Nesse momento, seus principais objetivos eram estudar línguas e mitos da região e reunir objetos para coleções museológicas. Em 1887, Boas já está definitivamente instalado nos Estados Unidos, o que contribui para torná-lo cada vez mais antropólogo e para fazer dele a mais importante força individual no estabelecimento da antropologia americana da primeira metade do século XX (CASTRO, 2004, p. 10; STOCKING JUNIOR, 2004a, p. 15).
O trabalho crítico de Boas parece ter se iniciado logo que o autor chegou aos Estados Unidos (STOCKING JUNIOR, 2004b, p. 81). Numa conferência proferida em 1896 e intitulada As limitações do método comparativo da antropologia, Boas contesta abertamente a orientação evolucionista vigente na pesquisa antropológica americana, afirmando “que todas as engenhosas tentativas de construção de um grande sistema da evolução da sociedade têm valor muito duvidoso” (BOAS, 2004a, p. 33). Esse argumento será retomado em sua fase mais madura – mais especificamente nos artigos: Os métodos da etnologia, de 1920; Alguns problemas de metodologia nas ciências sociais, de 1930; e Os objetivos da pesquisa antropológica, de 1931 – juntamente com a discussão sobre os limites no uso da ideia de difusão cultural e determinismo geográfico (BOAS, 2004b).
O pensamento de Boas acaba se aglutinando no que viríamos a chamar mais tarde de relativismo cultural e, além de influenciar fortemente a antropologia, acaba atingindo outros campos da saber, como a linguística. Por meio de seus estudos sobre as línguas indígenas norte-americanas, Boas identifica que as categorias tradicionais, previstas pelo universalismo linguístico, não se aplicavam a todas as línguas do mundo e que, de modo peculiar, cada língua seleciona aspectos específicos da imagem mental que precisam ser expressos. É esse pensamento que acabará por influenciar linguistas posteriores e servirá de base para a formulação da chamada hipótese de Sapir-Whorf, extremamente relevante nas discussões linguísticas atuais (GONÇALVES, 2020, p. 110-112).
Outro aspecto que torna Franz Boas um nome relevante na história do pensamento americano é a sua aproximação com as questões sociais de sua época. Em Raça e progresso, artigo publicado em 1931, o antropólogo descreve o contexto racial estadunidense e, em cinco importantes movimentos, desconstrói as principais teorias raciais de sua época: 1) o autor refuta a ideia de que a miscigenação causaria alguma degeneração da espécie humana; 2) desconstrói argumentos em defesa de que a guerra e a “antipatia racial” constituiriam ferramentas de seleção natural dos “melhores”; 3) argumenta que, apesar de existirem diferenças biológicas entre grupos humanos, boa parte das diferenças físicas seriam melhor explicadas por causas sociais; 4) mostra que fatores sociais fornecem uma melhor explicação das diferenças comportamentais, cognitivas e emocionais entre as raças; e 5) argumenta que a aversão ao diferente, existente em todas as sociedades fechadas, não sustenta a antipatia racial uma vez que, por exemplo, ela não é acompanhada de uma antipatia sexual entre as raças (BOAS, 2004b, p. 67-86). Ainda sobre sua atuação social, Ruth Benedict diz que:
Ele nunca compreendeu como era possível impedir que o conhecimento científico influenciasse as atitudes e ações de alguém nos assuntos do mundo. O que ele aprendeu através da investigação paciente e pesquisa impessoal ajudou-o a decidir sobre as questões do dia […]. Todos os seus estudos sobre outras culturas reforçaram a sua convicção de que as diferenças culturais são vitais e valiosas. Ele acreditava que o mundo devia ser seguro para as diferenças [BENEDICT, 2017, n.p].
Certamente há ainda muito a se falar sobre Franz Boas, mas o que apresentamos acima parece-nos suficiente para provar sua importância à nossa disciplina. Ainda que não tenha desenvolvido uma metodologia ou abordagem própria para a ciência total do homem, suas críticas às abordagens então vigentes foram fundamentais para moldar a disciplina, difundir a ideia do relativismo cultural e destacar a importância do trabalho de campo, além de influenciar grande parte dos antropólogos que o sucederam.
Talvez essa grande revolução encabeçada por Boas se deva justamente à sua vivência com física e matemática. Segundo Benedict (2017, n.p), o autor trouxe às ciências sociais uma mente sensível à necessidade de enquadrar questões científicas de modo que elas pudessem ser respondidas através de investigação. Krupat (1988 apud GONÇALVES, 2020, p. 110) parece concordar com tal posição e apresenta uma lista de comentários a fim de atestar que Boas encontrou a disciplina num estágio incipiente de opiniões “selvagens” e transformou-a em um campo de investigação onde as teorias poderiam ser testadas.
Ainda que existam algumas importantes críticas ao seu modo de pensar – uma delas, destacada pelo próprio Boas, referente ao perigo etnocentrista de um relativismo mal digerido (GOLÇALVES, 2020, p. 113) –, elas em nada diminuem a relevância do trabalho de Boas, e cremos que o pouco de suas ideias aqui apresentado já seja suficiente para gravar seu nome como um dos mais importantes antropólogos desde o século XX.
Referências
ANGELBECK, Bill. Franz Boas refracted through his local collaborators: a legacy with implications for collaborative archaeologies. EAZ – Ethnographisch-Archaeologische Zeitschrift, [S.l.], v. 57, n. 1, p. 1-3, 8 jun. 2023. Disponível em: http://dx.doi.org/10.54799/kxno4508. Acesso em: 10 nov. 2023.
BENEDICT, Ruth. An Anthropologist at Work. New York: Routledge, 2017.
BOAS, Franz. A formação da antropologia americana, 1883 – 1911: uma antologia. Rio de Janeiro: Contraponto – Editora da UFRJ, 2004a.
BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2004b.
CASTRO, Celso. Apresentação. In: BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. P. 7-23.
CASTRO, Celso. Textos básicos de antropologia: cem anos de tradição: Boas, Malinowski, Lévi-Strauss e outros. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. (Textos Básicos).
GONÇALVES, Rodrigo Tadeu. Relativismo linguístico ou como a língua influencia o pensamento. Petrópolis – RJ: Vozes, 2020.
PIEZONKA, Henny et al. Editorial: a space for difference. EAZ – Ethnographisch-Archaeologische Zeitschrift, [S.l.], v. 57, n. 1, p. 1-2, 30 mar. 2023. Disponível em: https://doi.org/10.54799/RXJR3581. Acesso em: 10 nov. 2023.
STOCKING JUNIOR, George W. Introdução: os pressupostos básicos da antropologia de Boas. In: BOAS, Franz. A formação da antropologia americana, 1883 – 1911: uma antologia. Rio de Janeiro: Contraponto – Editora da UFRJ, 2004a. p. 15-38.
_____. Pontos de vista antropológicos básicos. In: BOAS, Franz. A formação da antropologia americana, 1883 – 1911: uma antologia. Rio de Janeiro: Contraponto – Editora da UFRJ, 2004b. p. 81-83.
